Deficit público, política monetária e inflação

Artigo publicado, sob o título Defícit público e inflação, na revista Conjuntura Econômica em novembro de 1994 (página 8) e no jornal A Gazeta em 23 de novembro de 1994 (página 5).

Certamente, durante toda a história da humanidade jamais se verificou a ocorrência de qualquer episódio inflacionário sem que houvesse expansão na oferta de moeda. Fundamentado nesta evidência, Milton Friedman enunciou a seguinte lei: “a inflação é sempre e em toda parte um fenômeno monetário”. Esta regra ainda não foi desmentida pelos fatos – inclusive no Brasil.

Se a disciplina monetária é indispensável à estabilidade de preços, porque o governo – que é o único agente econômico capaz de fazer com que a oferta de moeda cresça continuamente – ocasionalmente a relega para segundo plano? Via de regra o descontrole monetário é decorrente do desequilíbrio fiscal. Sendo suas receitas fiscais insuficientes para financiar a totalidade dos seus dispêndios, o poder público lança mão da emissão de moeda para fazer frente aos seus gastos. Tanto que até a recente experiência brasileira, todos os fenômenos de hiperinflação observados haviam sido acompanhados por grandes deficits públicos.

Em conseqüência das raízes fiscais da maior parte dos processos hiperinflacionários, surgiu a crença de que esse tipo de fenômeno somente poderia surgir em decorrência de profundas crises orçamentárias. Contudo, o financiamento ao Tesouro Nacional não é o único fator capaz de gerar expansões na base monetária. Operações no mercado de câmbio e de assistência financeira às instituições bancárias, por exemplo, também influenciam a oferta de moeda.

No caso brasileiro, a fé nas origens fiscais da inflação relegou para segundo plano o estudo dos determinantes da expansão da base monetária. Porém, nada teria impedido a implementação de um programa de estabilização já em janeiro de 1992 – apesar dos cruzados novos ainda estarem sendo devolvidos. Com efeito, analisando-se o comportamento dos fatores condicionantes da base monetária, conclui-se imediatamente que o financiamento do Banco Central ao Tesouro Nacional não contribuiu para a expansão do meio circulante. Pelo contrário, se o deficit público fosse o único elemento determinante da trajetória da oferta de moeda, esta variável teria decrescido.

Conforme os dados divulgados pelo Banco Central, suas operações com o Tesouro Nacional sobre o meio circulante foram contracionistas em vinte dos trinta meses que antecederam o Plano Real – janeiro de 92 a junho de 94. E, como ficará claro mais à frente, nos outros dez meses teria sido perfeitamente possível enxugar a liqüidez adicional decorrente daquelas operações. Note-se que em apenas um desses dez meses o efeito das intervenções no mercado de câmbio não foi mais expansionista do que o impacto gerado pela existência de um deficit fiscal.

À primeira vista, tais conclusões são surpreendentes. Todavia, quando se analisam as estatísticas fiscais, compreende-se parcela desses resultados. Em 1992 o governo federal apresentou um pequeno deficit operacional. Em 1993 e janeiro do corrente ano se verificaram superavits operacionais. No conceito primário, houve superavits em todas essas ocasiões. Logo, a menos de dificuldades na rolagem da dívida pública (o que não se verificou), não haveria porque a oferta de moeda se expandir em decorrência da crise financeira da União.

Por outro lado, a origem dos efeitos das intervenções no mercado cambial sobre a trajetória da quantidade de moeda se encontra no princípio da gestão de Marcílio Marques Moreira no Ministério da Economia. A saída de Zélia Cardoso de Melo e sua equipe possivelmente sinalizou para os agentes econômicos que o período de heterodoxia na condução da política econômica estaria, ao menos provisoriamente, encerrado. Adicionalmente, a nova administração promoveu uma expressiva elevação na taxa real de juros. Como no Brasil o fluxo de capitais com o exterior possui significativa mobilidade, houve um incremento no valor dessa última variável.

Naturalmente, o crescimento no ingresso de capitais teria de ser absorvido ou por um decréscimo no saldo em conta corrente ou por uma expansão nos haveres externos. Já que o Banco Central manteve a variação percentual da taxa de câmbio próxima aos patamares inflacionários, o saldo em conta corrente das transações externas não se ajustou à expansão no saldo da conta de capitais. Logo, as reservas internacionais teriam de crescer, como efetivamente veio a ocorrer.

Os efeitos da sustentação da taxa real de câmbio sobre a trajetória da base monetária foram expressivos. Caso o Banco Central tivesse se retirado em janeiro de 91 do mercado de câmbio – e não apenas quando da adoção do Real – teria sido posteriormente possível manter a base monetária quase que estável! Com efeito, dos trinta meses em questão em apenas oito o impacto monetário da expansão das reservas internacionais não excedeu o próprio crescimento da oferta de moeda. Em outras palavras, se o Banco Central não tivesse comprado dólares e atuasse exatamente da mesma forma que atuou sobre as demais variáveis capazes de influenciar o comportamento da base monetária, esta teria decrescido em vinte e dois dos trinta meses estudados – decrescido ao ponto de anular-se!

Os dados divulgados pelo próprio governo brasileiro são inequívocos. Apesar da liberação dos cruzados novos (que ainda ocorria em 1992) e da delicada situação das contas públicas em 1992, 1993 e no primeiro semestre do corrente ano, nada teria impedido a execução de um programa de austeridade monetária. Alternativamente, como o valor em dólares do passivo monetário do Banco Central foi sempre inferior ao dos haveres internacionais, também teria sido perfeitamente viável fixar a taxa nominal de câmbio e adotar a conversibilidade plena da moeda nacional.

É importante realçar a singularidade de nosso recente processo inflacionário. O Brasil foi o único país do mundo a experimentar elevados índices de inflação por um período tão extenso sem que houvesse um expressivo componente fiscal determinando o crescimento do meio circulante. Em outras palavras, durante o período em questão a sociedade brasileira conviveu com a inflação em decorrência única e exclusiva de uma política monetária fundamentada em objetivos equivocados.

Finalizando, deve ser destacada a relevância da questão fiscal para o futuro do Plano Real. O fato das operações do Banco Central com o Tesouro Nacional não terem contribuído em um passado recente para a expansão da base monetária não implica existir um equilíbrio duradouro nas finanças públicas. Para que o processo inflacionário não renasça é indispensável que, dentre outros problemas, sejam equacionadas de forma definitiva as questões da dimensão e do financiamento do Estado. Caso contrário, o ressurgimento das pressões de natureza fiscal sobre a política monetária poderão colocar a perder todos os bons resultados obtidos até o presente momento.


Alexandre Barros da Cunha
Professor da Universidade Santa Úrsula e da PUC-Rio.