Títulos indexados e gerenciamento da dívida pública

Artigo publicado no jornal Gazeta Mercantil, sob o título Títulos indexados e gerenciamento da dívida, em 2 de agosto de 2004 (página A3).

A dívida pública interna, como fração do PIB, era da ordem de 29% em junho de 1996. Desde então esse quociente vem crescendo. Ele atingiu 49% ao fim de 2000, 59% em dezembro de 2003 e 57% em maio último e deverá permanecer relativamente estável enquanto o governo federal obtiver um superávit primário expressivo.

Uma dívida pública da ordem de 60% do PIB é elevada seja para os padrões brasileiros ou internacionais. Por exemplo, um pré-requisito para que um país possa ingressar na União Européia é ter um endividamento governamental inferior a 60% do seu produto.

A estabilização da relação dívida/PIB requer, ano após ano, a geração de um superávit primário elevado o bastante para cobrir os encargos da dívida. Por isto o governo federal tem adotado políticas fiscais restritivas.

Como o superávit primário existe justamente para impedir o crescimento da dívida pública, um “desaparecimento” desta representaria um alívio permanente para os cofres dos tesouros federal, estaduais e municipais. Por exemplo, já em 2004 os governos teriam a seu dispor recursos adicionais equivalentes a aproximadamente 4,25% do PIB (observe que esta cifra corresponde a meta para o superávit primário deste ano) para custear seus gastos e/ou reduzir a carga tributária. Tendo em vista que os recursos alocados pelo governo federal aos programas sociais em 2003 foram equivalentes a aproximadamente 2,5% do PIB, não é difícil imaginar o quanto nossos governantes apreciariam um eventual “desaparecimento” da dívida pública.

Os argumentos acima apresentados não são suficientes para estabelecer que os governantes necessariamente desejariam “dar um cano” na dívida pública. Ao não honrar os seus débitos um governo estará, implicitamente, tributando os seus credores exatamente no montante da dívida cancelada. Logo, um calote somente será uma boa opção se aplicar o imposto implícito em tal política for preferível a aumentar a carga tributária em montante equivalente.

A principal vantagem de um calote na dívida pública vis-à-vis a uma elevação da carga tributária decorre dos distintos impactos dos dois tipos de impostos. Se o governo desse um calote na dívida, ele estaria arrecadando, instantaneamente, aproximadamente 60% do PIB. A exemplo do ocorrido após o Plano Collor, haveria uma forte recessão. Contudo, a economia ainda iria funcionar, assim como funcionou após aquele fracassado plano.

Observe que os 60% acima mencionados correspondem a uma carga tributária adicional a já existente. Por sua vez, esta última já anda na vizinhança dos 40% do PIB. Não é difícil concluir que se o governo tentasse obter os 60% adicionais utilizando os impostos tradicionais (IPI, IR, CPMF, etc), ele estaria decretando o fim da economia formal no Brasil. Por esta razão o governo pode desejar dar um calote na dívida pública. Não é uma questão de caráter, promessa ou ideologia. Sob o ponto de vista do bem-estar social, o calote tem alguma vantagem.

Aspectos legais criam restrições à ocorrência de calotes. Tribunais não necessariamente aceitariam uma anulação das dívidas para com os detentores de títulos públicos. Reputação é um outro fator que incentiva o governo a honrar os seus débitos. Um calote na dívida poderá dificultar a obtenção de crédito no futuro.

A inflação fornece uma maneira dissimulada e legal de “dar um cano” na dívida pública. Uma elevação de 300% no nível de preços reduz o poder aquisitivo de cada real em 75%. Como 16% da dívida pública federal não está indexada, uma maneira eficiente de não honrar alguns débitos governamentais consiste em gerar inflação. Evidentemente, o incentivo para lançar mão da inflação é tão maior quanto maior a fração não indexada da dívida.

A existência de títulos indexados permite com que os investidores, avessos a flutuações, consigam manter o valor real dos títulos públicos em suas carteiras protegido das oscilações da inflação e do câmbio. Essa garantia da manutenção do valor real dos ativos faz com que os títulos indexados sejam vendidos com um prêmio de risco menor que os dos títulos não indexados.

Enquanto não ocorrer uma significativa redução na relação dívida/PIB é desejável a utilização de títulos indexados na rolagem da dívida do setor público. Um excessivo acréscimo da participação de títulos não indexados no total da dívida terá como conseqüências a elevação dos juros reais e uma maior tolerância do governo com surtos inflacionários. Adicionalmente, se os agentes econômicos acreditarem em uma desvalorização cambial e no recrudescimento da inflação, eles poderão se negar a comprar os títulos públicos. O governo será forçado a monetizar a dívida e uma mera expectativa de crise cambial e aceleração inflacionária poderá determinar a ocorrência das mesmas.


Eurilton Araújo
Ph.D. em Economia pela Universidade Northwestern e professor do Ibmec São Paulo.

Alexandre B. Cunha
Ph.D. em Economia pela Universidade de Minnesota e professor do Ibmec Rio.