O impacto monetário da acumulação de reservas

Artigo publicado no Jornal dos Economistas em janeiro de 1995 (página 9).

Todos os fenômenos inflacionários conhecidos tiveram pelo menos um ponto em comum: a expansão da oferta de moeda. Mas se disciplina monetária é um fator necessário e suficiente à estabilidade dos preços, porque alguns governos a relegam para segundo plano? A resposta é simples. Os governos utilizam a emissão de moeda para se financiar.

Um analista apressado poderia afirmar que o caso brasileiro nos 30 meses que antecederam a adoção do real divergiu do padrão acima apontado. Nesse período o governo federal praticamente não apresentou deficits operacionais e os impactos das operações do Tesouro Nacional sobre a base monetária foram via de regra contracionistas.

Porém, se não se emitiu moeda para financiar o Tesouro, o que determinou a expansão da base monetária? Se o deficit operacional fosse nulo, a soma entre as variações reais da dívida pública (interna e externa) e da base monetária e o imposto inflacionário também o seria. Em outras palavras, mesmo existindo equilíbrio operacional o governo poderia ser obrigado a lançar mão do imposto inflacionário caso ocorresse algum problema para rolar a dívida pública ou uma redução na demanda real por base monetária. Esse não foi o caso brasileiro. A dívida pública não apenas foi rolada como também cresceu e o valor real da base monetária não apresentou grandes variações.

A resposta correta para a pergunta acima requer o conhecimento do fato de que o deficit operacional consolidado do Tesouro e do Banco Central não foi zerado. Nem todas as despesas do Banco Central estão incluídas no orçamento da União. Despesas com salários, aquisição de novos computadores e outras assemelhadas fazem parte do orçamento fiscal. Dispêndios efetuados em operações como compra de dólares e assistência financeira às instituições bancárias não o fazem.

Agora já é possível elucidar o porquê da ocorrência de inflação elevada no período anterior ao Plano Real. Já nessa época a economia brasileira era caracterizada por elevadas taxas reais de juros, as quais foram acompanhadas por um incremento no saldo da conta de capitais do balanço de pagamentos.

O crescimento no fluxo líqüido de capitais ocasionou um acréscimo na oferta interna de dólares. Essa expansão da oferta teria gerado, caso o Banco Central não interviesse no mercado de câmbio, uma apreciação real da moeda nacional. Como um dos objetivos da autoridade monetária era ajustar a trajetória do câmbio ao diferencial entre as taxas interna e externa de inflação, a única forma do Banco Central atingir sua meta referente ao preço da divisa estrangeira era comprar todo o excesso de oferta de dólares.

Explica-se assim a convivência entre imposto inflacionário, um suposto equilíbrio operacional, dívida pública crescente e base monetária real inalterada: as despesas com aquisição de dólares no mercado de câmbio não eram computadas no cálculo do deficit operacional. Resta agora analisar a maneira pela qual o Banco Central financiou a expansão das reservas internacionais.

Em artigo publicado em dezembro último neste periódico (O Papel Inflacionário dos Fluxos Cambiais) o professor Márcio G. P. Garcia apresentou evidências da acumulação de reservas ter sido financiada através da expansão da dívida pública. Ainda segundo aquele autor, o crescimento da oferta monetária ocorrido no período em questão não poderia ser atribuído às intervenções do Banco Central no mercado de câmbio, pois os dólares que aqui ingressaram assim o fizeram para serem aplicados em títulos públicos.

Inicialmente, deve-se ressaltar que não possui maior significado a seguinte pergunta: “Como o governo brasileiro financiou a expansão das reservas cambiais?”. De fato, a menos de formalismos legais, se existisse fonte de financiamento para uma despesa qualquer, essa mesma fonte poderia financiar qualquer outro tipo de dispêndio. Na sua forma correta, a questão deveria ser colocada na maneira que se segue: “Como o governo financiou a totalidade de suas despesas?”.

Contudo, essa pergunta também não possui maior interesse para a presente discussão. A questão relevante deve ser expressa na forma abaixo: “Se o Banco Central tivesse deixado de sustentar da taxa real de câmbio antes de julho de 94 o processo inflacionário teria sido estancado, como ocorreu quando da adoção do real?”.

As estatísticas disponíveis apontam para uma resposta afirmativa. Caso o Banco Central tivesse se retirado do mercado de câmbio ainda em janeiro de 92, teria sido possível manter a base monetária quase que estável. Dos 30 meses existentes de janeiro de 92 a junho de 94, em apenas 8 o impacto monetário da expansão das reservas não excedeu o próprio crescimento da oferta monetária. Ou seja, se o Banco Central não tivesse comprado dólares e atuasse exatamente da mesma forma que atuou sobre as demais variáveis capazes de influenciar o comportamento da base monetária, esta teria decrescido em 22 dos 30 meses estudados. Decrescido a ponto de se anular.

Como ainda não se teve conhecimento da ocorrência de inflação sem que houvesse por trás o combustível da expansão monetária, é razoável supor que sem essa insana acumulação de reservas não seria necessário aguardar o Plano Real para que o país desfrutasse de preços quase estáveis. Vale observar que os efeitos inflacionários desse tipo de política já haviam sido previstos pelo FMI – ver Montiel e Jonatham, Macroeconomic Implications of Real Exchange Rate Targeting in Developing Countries, IMF Staff Papers, dezembro de 91.

Os dados são claros. Apesar da devolução dos cruzados novos bloqueados (que ainda ocorria em 92) e da precariedade das contas públicas em 92, 93 e no primeiro semestre de 94, nada teria impedido a execução de um programa de austeridade monetária. A bem da verdade, as estatísticas parecem afirmar que os elevados índices de inflação verificados de janeiro de 1992 a junho de 1994 decorreram única e exclusivamente de políticas monetária e cambial fundamentadas em objetivos equivocados.


Alexandre Barros da Cunha
Professor da Universidade Santa Úrsula e da PUC-Rio.