Criminalidade: o papel dos incentivos

Artigo publicado, sob o título Leis brasileiras estimulam o engajamento no crime, no jornal Valor Econômico em 11 de novembro de 2005 (página A12).

Notícias de assassinatos, corrupção e outros crimes têm recebido destaque na imprensa nacional. Há uma sensação generalizada de que violência e corrupção atingiram patamares elevados. De fato, esses problemas são hoje de tal magnitude que a redução drástica dos mesmos deveria ser uma das principais metas das políticas públicas.

Em 1995 a taxa de homicídio no Brasil dentre a população masculina de 10 a 29 anos foi igual a 59,6 para cada cem mil habitantes. As estatísticas equivalentes de Chile, Costa Rica, Estados Unidos, México, Nicarágua, Paraguai, Portugal e Rússia foram, respectivamente, 5,1; 8,4; 17,9; 27,8; 12,5; 18,7; 2,1 e 27,5.

Não se deve ter ilusão sobre a dimensão do problema da violência. A taxa de homicídio de 59,6 acima listada foi decorrente de 18,5 mil assassinatos de meninos e jovens adultos no Brasil em 1995. A título de comparação, considere o número de mortos e desaparecidos norte-americanos durante os oito anos em que tropas dos EUA combateram no Vietnã. Aquelas baixas atingiram a média anual de 7,3 mil.

A violência não se resume a assassinatos. Ela abrange também roubos, furtos, agressões etc. Logo, o problema é ainda mais amplo do que o sugerido pelos dados acima apresentados.

Não é possível mensurar a corrupção de forma acurada. Para que isto fosse factível, seriam necessárias informações simplesmente inexistentes. Por exemplo, seria preciso conhecer o total de recursos públicos desviados em um dado ano. Desta forma, poder-se-ia expressar a cifra em questão como percentagem da arrecadação tributária no mesmo período.

Apesar da escassez de dados, ainda é possível estabelecer que a corrupção é de grande magnitude. Segundo nota divulgada em maio de 2004 pela Secretaria de Comunicação da Presidência da República, um único grupo de fraudadores desviou quantia superior a R$ 800 milhões dos cofres do INSS.

A arrecadação do imposto de renda pessoa física (IRPF) em 2003 atingiu R$ 37,5 bilhões. Logo, o montante desviado por uma única quadrilha durante seu incerto período de atividade correspondeu a aproximadamente 2,1% da receita anual do governo com o tributo em questão.

Usualmente o debate sobre políticas públicas voltadas ao combate da criminalidade gira em torno de propostas como “modernização da justiça”, “reaparelhamento das forças policiais” etc. Ou seja, o governo deve buscar a elevação da sua capacidade de identificar, prender e julgar os criminosos. Aumentar a eficiência da polícia e do judiciário deveria contribuir para a redução da violência e da corrupção. Contudo, no caso particular do Brasil, é possível que investimentos adicionais em segurança e justiça não sejam, isoladamente, eficazes para gerar decréscimos expressivos na criminalidade.

Um fator central na determinação do comportamento dos indivíduos e instituições são os incentivos pecuniários e não pecuniários decorrentes das ações alternativas a eles disponíveis. Infelizmente, o arcabouço legal e jurídico da sociedade brasileira estimula qualquer indivíduo a se engajar em atividades criminosas. Em outras palavras, a impunidade incentiva o crime.

O recente escândalo do mensalão ilustra perfeitamente o péssimo desenho dos incentivos no Brasil. Por razões que fogem ao escopo deste artigo, diversos congressistas têm assegurado a prerrogativa de se aposentarem a qualquer momento que desejarem.

Assuma que o parlamentar X já tenha direito a usufruir da sua aposentadoria caso a solicite. Suponha agora que X receba uma proposta para obter recursos de legalidade duvidosa. Caso ele opte por não ingressar em tal esquema, o seu benefício pecuniário será composto somente pelo seu provento de congressista. Caso decida ingressar e a legalidade do esquema não seja questionada, X receberá o seu provento e os recursos de legalidade duvidosa. Se o esquema for descoberto e a sua legalidade vier a ser discutida, X poderá simplesmente renunciar ao mandato e se aposentar.

Observe que no exemplo do parágrafo anterior, a única perda financeira que X poderá sofrer é um eventual diferencial entre os proventos que aufere na ativa versus a aposentadoria. Ou seja, as regras do jogo dizem “X, participe do mensalão. Se você não for descoberto, ótimo. Se o esquema for denunciado você poderá se aposentar.” Claramente X tem um grande incentivo para participar do mensalão.O caso acima ilustra uma grande distorção nos incentivos existentes no Brasil. As regras são tais que existe enorme probabilidade de que pessoas envolvidas em atividades juridicamente questionáveis (ou mesmo criminosas) não se defrontem com perdas materiais e de bem-estar expressivas mesmo quando são descobertas. O notório episódio do edifício Palace II também constitui boa ilustração. Tratar menores infratores de forma paternalista é um outro exemplo do mesmo problema.

Nenhum governo tem como impactar a condição econômica e social dos criminosos que não forem capturados. Contudo, a situação daqueles que forem flagrados é uma variável sob controle da administração pública. Enquanto tal situação acarretar pouco prejuízo aos infratores, haverá incentivos para que os indivíduos optem pela criminalidade. Esses incentivos existirão mesmo que o Brasil venha a ter uma polícia eficiente e uma justiça célere.

Eliminar os incentivos à criminalidade consiste em criar uma estrutura jurídica que respeite um princípio simples: um criminoso apanhado pelo poder público ficará em uma situação substancialmente pior do que aquela que se encontraria caso tivesse optado pela legalidade. No caso do mensalão, não deveria ser possível a um parlamentar que viesse a ser condenado manter uma aposentadoria subsidiada pelo poder público. Os responsáveis pela construção do Palace II deveriam se defrontar com penas extremamente elevadas e receber uma oferta da promotoria de redução do tempo de prisão se indenizassem as suas vítimas em curto espaço de tempo.

Investir no aparelhamento dos órgãos públicos responsáveis pelo combate à criminalidade não será suficiente para eliminar essa mazela. Um aspecto muito mais profundo do problema é dado pelos incentivos. Eles estão desenhados de forma que o crime muitas vezes compense. Enquanto esses incentivos não forem redefinidos, violência e corrupção continuarão em patamares elevados.


Luciane C. Carpena
Ph.D. em Economia pela Universidade de Minnesota, economista do BNDES e professora do Ibmec Rio.

Alexandre B. Cunha
Ph.D. em Economia pela Universidade de Minnesota e professor do Ibmec Rio.