A qualidade do serviço não justifica o valor da conta

Artigo publicado no jornal Valor Econômico em 5 de setembro de 2003 (página A10).

A iminência de uma ampla reforma tributária no país tem levantado um amplo leque de questões, em sua grande maioria ligadas às preocupações de setores específicos em não serem prejudicados com as mudanças. É claro que todos desejam impostos baixos, mas como eles são necessários para o financiamento do setor público é necessário analisar conjuntamente o peso da carga fiscal e a qualidade dos serviços oferecidos pelo governo.

Os impostos no Brasil são elevados? Os serviços públicos são de boa qualidade? Não existe uma resposta absoluta para essas perguntas. As expressões “elevados” e “boa qualidade” embutem algum juízo de valor. Neste texto, buscar-se-á responder a essas indagações com base nas experiências internacional e brasileira.

Divulgou-se recentemente que a carga tributária brasileira atingiu o equivalente a 35,8% do PIB em 2002. Esta é uma cifra elevada para os padrões históricos brasileiros. Por exemplo, de 1970 até 1998 o governo sempre arrecadou menos de 30% do PIB.

No contexto da América Latina o Brasil também tem uma carga tributária elevada. Nos anos de 1993, 94 e 95, a carga tributária média do Chile foi igual a 21% do PIB. Em 2001, o governo chileno arrecadou o equivalente a 20% do PIB. Para os países do Mercosul, excluindo o Brasil, a arrecadação do governo foi, em média, próxima a 19%. Por outro lado, a carga de impostos no Brasil não parece excessiva quando comparada à de alguns países desenvolvidos. Os países europeus integrantes da OCDE apresentaram, para os anos de 1993, 94 e 95 uma carga média de 38% do PIB. Para Estados Unidos e Canadá se verificou uma cifra de aproximadamente 32% no mesmo período.

Comparar a qualidade dos serviços públicos em diferentes países não é um exercício trivial. Contudo, o Banco Mundial fornece uma interessante pesquisa de opinião (The World Business Environment Survey, disponível no site http://info.worldbank.org/governance/wbes) junto a empresas de atuação internacional. Pergunta-se a cada empresa como ela avalia a qualidade de uma série de instituições e serviços governamentais (por exemplo, a qualidade das escolas públicas) em um determinado país. Há seis opções de resposta, indo de “muito bom” a “muito ruim”.

A pesquisa engloba um grande número de itens, que nós agregamos  em cinco grupos. (i) Serviços: estradas, correio e fornecimento de água. (ii) Administração pública: governo central, banco central, forças armadas, parlamento, alfândega. (iii) Lei e ordem: judiciário e segurança pública; (iv) Educação. (v) Saúde. O gráfico mostra o percentual de firmas que considera que a qualidade de um determinado serviço está nas três categorias superiores: muito bom, bom, ligeiramente bom. Apresentamos os resultados para o Brasil, a América Latina e a OCDE.

Como seria de se esperar, a qualidade dos serviços públicos na OCDE é, na maioria dos itens, largamente superior à da América Latina. Surpreendente é que a qualidade dos serviços públicos brasileiros é baixa mesmo quando comparada com a América Latina. O único resultado positivo para o Brasil está associado ao bom desempenho dos correios e dos serviços de água, dentro do grupo Serviços.

Os resultados para Saúde, Educação e Lei e Ordem são especialmente negativos. Apenas 21% da empresas consideram a qualidade da educação pública no Brasil aceitável e esse número cai para 8% no caso da saúde pública. Infelizmente, não temos dados, por país, sobre a avaliação dos usuários diretos dos serviços.

Esses resultados negativos são duplamente problemáticos. Em primeiro lugar, esses itens são importantes condicionantes do crescimento econômico. Em artigo publicado neste mesmo espaço em 7 de agosto de 2002, nós apresentamos evidência internacional que indica uma nítida correlação positiva entre nível de renda per capita e qualidade da governança pública. Serviços públicos de baixa qualidade são um exemplo de instituições públicas deficientes.

Em segundo lugar, a baixa qualidade de serviços públicos como Saúde, Educação e Lei e Ordem tem um impacto negativo direto na qualidade de vida da população mais pobre. Um estudo publicado pelo IPEA (Focalização dos Gastos Públicos Sociais e Erradicação da Pobreza no Brasil, de Ricardo Paes de Barros e Miguel Nathan Fogel, capítulo 25 do livro Desigualdade e Pobreza no Brasil, organizado por Ricardo Henriques) avalia que “os gastos sociais brasileiros representam mais de três a quatro vezes o valor necessário para erradicar toda a pobreza no Brasil”. O país não gasta pouco com serviços públicos, mas gasta de forma muito ineficaz. Em outras palavras, o desperdício compromete os resultados.

Ou seja, a carga tributária brasileira é elevada para os padrões latino-americanos e vem aumentando, aproximando-se dos níveis dos países europeus da OCDE. Mas a qualidade dos serviços públicos brasileiros é muito inferior tanto à da OCDE quanto à da América Latina. Isto dificulta o crescimento econômico e, portanto, a redução da pobreza. E, o mais grave em uma sociedade pobre como o Brasil, compromete a eficácia da rede de proteção social proporcionada aos mais necessitados.

Os dados acima constituem uma análise superficial da qualidade dos serviços públicos brasileiros e do peso da carga tributária. A despeito de suas limitações, entretanto, eles podem ser úteis para orientarem linhas gerais na discussão sobre a reforma tributária. Em particular, eles sugerem que elevar a qualidade e a abrangência dos serviços públicos brasileiros não requer uma elevação da carga tributária, pois países com serviços de qualidade superior têm níveis de taxação bastante inferiores.


Alexandre B. Cunha
Professor do Ibmec Rio.

Antonio Fiorencio
Professor do Ibmec Rio e da UFF.